Você Sabe Ler Como Fisioterapeuta?

Lendo Artigos Científicos em Fisioterapia
De Sergio Marinzeck



É comum na área de fisioterapia o uso de procedimentos de avaliação e de terapêutica que possuem pouco ou nenhuma comprovação científica, ou que tem comprovação discutível. O estudo científico deve guiar nossas ações, mas o mesmo deve ser realizado de forma correta, o que nem sempre acontece. Esse pequeno texto foi escrito com a finalidade de ajudar os leitores a diferenciar, entre estudos clínico-experimentais, aqueles que são válidos e aqueles que não são.



São os achados desse estudo válidos?
A Mobilização Neural é um tratamento efetivo para epicondilite lateral? Os programas de alongamento previnem o desenvolvimento de contraturas após um AVC? Pode o flutter reduzir complicações respiratórias pós-operatórias? Respostas rigorosas à essas questões só podem ser providas por estudos clínico-experimentais propriamente elaborados e implementados. Infelizmente a literatura contém tanto estudos bem realizados onde pode ser retirado conclusões válidas quanto estudos mal realizados que trazem conclusões inválidas; o leitor deve ser capaz de distinguir entre os dois. Esse texto descreve pontos chaves dos estudos clínico-experimentais (ou “filtros metodológicos”) que lhe conferem validade.


Alguns estudos que têm o propósito de determinar a eficácia dos programas de tratamento simplesmente juntam um grupo de indivíduos com uma condição em particular e tomam medidas da severidade da condição antes e depois do tratamento.


Se os indivíduos melhoram depois de um período de tratamento, o tratamento é dito ser eficaz. Estudos que aplicam esse método raramente provêem evidência satisfatória da eficácia do tratamento pois é raramente certo que a melhora observada é devida ao tratamento , e não à variáveis externas como recuperação natural, regressão estatística (um fenômeno estatístico onde as pessoas se tornam menos “extremas” com o tempo simplesmente devido à variabilidade em sua condição), efeitos placebos ou o efeito “Hawthorne” (onde os indivíduos reportam melhora pois eles pensam que é isso o que o investigador quer ouvir). A única maneira satisfatória de se lidar com essas ameaças à validade do estudo é ter um grupo controle. Então, uma comparação é feita entre os resultados dos indivíduos que receberam o tratamento e aqueles que não o receberam.


A lógica dos estudos controlados é que, na média, variáveis externas devem agir no mesmo grau para tanto o grupo tratamento como para o grupo controle, de forma que qualquer diferença entre os grupos no final do experimento seja apenas devido ao tratamento. Por exemplo, é amplamente conhecido que a maioria dos casos de dor lombar aguda resolvem espontaneamente e rapidamente, mesmo na ausência de qualquer tratamento. 


Então apenas mostrar que os indivíduos melhoraram durante o curso do tratamento não constitui numa evidência de eficácia desse tratamento. Um estudo controlado que mostrasse que os indivíduos tratados melhoram mais do que os indivíduos do grupo controle seria uma evidência forte de que a melhora foi devida ao tratamento, pois a recuperação natural deve estar ocorrendo nos grupos tratamento e controle da mesma forma.


A observação que os indivíduos tratados melhoraram mais do que os indivíduos do grupo controle sugere que algo além da recuperação natural estava fazendo os indivíduos melhorarem. Note que, num estudo controlado, o grupo “controle” não precisa necessariamente receber nenhum tratamento. Freqüentemente, em estudos controlados, a comparação é feita entre o grupo controle que recebe terapia convencional e o grupo experimental que recebe a terapia convencional mais o tratamento. Ainda, alguns estudos comparam um grupo controle que recebe um tratamento convencional com o grupo experimental que recebe uma nova terapia.


É importante frisar que o grupo controle só provê proteção contra os efeitos das variáveis externas se os grupos tratamento e controle forem iguais. Apenas quando os grupos controle e tratamento são iguais em todos aspectos que determinam o resultado (além do próprio tratamento) pode o experimentador estar certo que as diferenças no final do estudo se devem apenas ao tratamento. Na prática isso é conseguido com a colocação aleatória de indivíduos para os grupos controle e tratamento.


De fato, quando os indivíduos são alocados aleatoriamente, as diferenças entre os grupos controle e tratamento podem apenas ser devido ao tratamento ou à sorte, sendo que é possível eliminar a sorte se as diferenças são grandes o suficiente - isso é o que os testes estatísticos fazem. Note que essa é a única maneira de se certificar da compatibilidade dos grupos controle e tratamento. Não há uma alternativa verdadeiramente satisfatória à alocação aleatória.


Mesmo quando os indivíduos são alocados aleatoriamente aos grupos, é necessário a certificação que o efeito (ou a falta dele) do tratamento não está distorcido por “influências do observador”. Isso refere à possibilidade que a crença do observador na eficácia do tratamento pode de forma subconsciente distorcer as medidas dos resultados do tratamento. A melhor proteção é “cegar” o observador - tendo a certeza que a pessoa que mede os resultados não sabe se o indivíduo sabia ou não sabia se tinha recebido o tratamento. Também é desejável que os pacientes e os terapeutas também estejam cegos.


Quando os pacientes são “cegados”, você pode saber que o efeito aparente do tratamento não foi por placebo ou efeito Hawthorne. Cegar os terapeutas para a terapia que ele está aplicando é geralmente difícil ou impossível, mas nos estudos em que o terapeuta é cego à terapia (como, por exemplo, nos estudos de Laser em que o terapeuta não sabe se o aparelho está ligado ou não) você pode saber que os efeitos dessa terapia não foram produzidos pelo entusiasmo com a terapia, mas pela própria terapia.


Também é importante que um número pequeno de indivíduos descontinuem sua participação (“drop-out”) ao longo do estudo. Dropouts podem seriamente distorcer os achados do estudo. Um verdadeiro efeito do tratamento pode ser disfarçado se alguns indivíduos do grupo controle que tiveram sua condição piorada durante o período de estudo deixarem o estudo para procurar ajuda, já que isso iria fazer o grupo controle parecer melhor (na média) do que é realmente. Ao contrário, se o tratamento fizer a condição de alguns indivíduos piorar e esses deixarem o estudo, o tratamento iria parecer mais eficaz do que realmente é.


Por essa razão, os dropouts sempre introduzem uma certa incerteza na validade de um estudo clínico-experimental. É claro que, quanto mais dropouts, maior a incerteza - uma regra grosseira é que se mais de 15% dos indivíduos deixarem o estudo, esse estudo está potencialmente falho. Alguns autores simplesmente não reportam o número de dropouts. Ficando com o princípio cientifico estabelecido de culpado até que se prove inocente, esses estudos devem ser considerados potencialmente inválidos.


Resumindo, estudos clínico-experimentais válidos, têm:
  • - alocação aleatória de indivíduos para os grupos tratamento e controle.
  • - observadores cegos, e preferencialmente pacientes e terapeutas também.
  • - poucos dropouts
Por mais incrível que pareça, um grande número de estudos publicados em revistas científicas na área de medicina e afins não têm essa metodologia ou a mesma é pobre. A próxima vez que você ler um estudo clínico-experimental em fisioterapia, pergunte para si mesmo se esse estudo tem essas características. Como regra geral, aqueles estudos que não satisfazem esses critérios podem ser inválidos e não devem ser considerados como evidência da eficácia (ou ineficácia) do tratamento. Aqueles estudos que satisfazem esses critérios devem ser lidos cuidadosamente e seus achados fixados na memória!

É a terapia clinicamente útil?
A seção precedente apresentou uma lista de critérios os quais os leitores podem usar para diferenciar estudos que são válidos daqueles que não são. Estudos que não satisfazem a maioria dos filtros metodológicos devem ser ignorados. Essa seção considera como os terapeutas devem interpretar os estudos que satisfazem os filtros metodológicos.

A mensagem é que não é suficiente olhar simplesmente por evidências estatisticamente significantes da terapia. Você deve estar satisfeito que o estudo mede resultados que são importantes, e que os efeitos positivos da terapia são grandes o suficiente para faze-la útil. Os efeitos danosos da terapia devem ser infreqüentes ou pequenos de forma que ela faça mais “bem” do que “mal”. Também se discute a relação custo/eficiência, mas esse aspecto não será abordado aqui.

É claro que, para um estudo ser útil ele deve investigar os efeitos importantes do tratamento. Isso significa que os resultados devem ser medidos de uma forma válida. Geralmente, como normalmente julgamos o valor primário de um tratamento se ele satisfaz as necessidades dos pacientes, a medição dos resultados deve ser importante para eles. Portanto, um estudo que mostra que o Laser baixa os níveis de serotonina é bem menos útil que outro que mostra que ele reduz a dor, e um estudo que mostra que o treinamento motor reduz a espasticidade é bem menos útil que outro que mostra o aumento da independência funcional.

A quantidade de efeito da terapia é obviamente importante, mas frequentemente esquecida. Talvez porque muitos leitores de estudos clínico-experimentais não apreciam a distinção entre “estatisticamente significante” e “clinicamente significante”. Ou talvez reflita a preocupação de muitos autores de estudos com se “p<0.05” ou não. A significância estatística (“p<0.05”) significa se o efeito da terapia é maior daquele que poderia ser atribuído pela sorte apenas. Isso é importante (nós precisamos saber se os efeitos da terapia não foram apenas sorte) mas por si só não nos diz nada sobre quão grande o efeito realmente é.

A melhor estimativa da intensidade do efeito de uma terapia é a diferença média entre grupos. Portanto, se um estudo hipotético sobre o efeito de uma técnica de Terapia Manual reporta que a dor no ombro, medida por uma escala visual de 10 cm* foi reduzida em média 4 cm no grupo tratamento e 1 cm no grupo controle, nossa melhor estimativa do efeito médio do tratamento é uma redução de 3 cm na escala visual (4 cm menos 1 cm). Outro estudo hipotético do alongamento muscular antes da prática de esportes pode reportar que 2 % dos pacientes no grupo alongamento foram subseqüentemente lesados, comparado à 4 % no grupo controle. Nesse caso o alongamento reduziu o risco de lesão em 2% (4% menos 2%).

Os leitores de estudos clínico-experimentais devem olhar para o tamanho do efeito reportado para se decidirem se o efeito é grande o suficiente para ser clinicamente válido. Lembre-se que os pacientes geralmente vêm a terapia procurando por curas (essa generalização não pode ser sustentada em todas áreas da prática clínica) - a maioria não está interessada em terapias que têm apenas pequenos efeitos.

Muitos estudos não reportam os efeitos danosos das terapias (ou seja, os “efeitos colaterais” ou “complicações” da terapia). Isso é uma infelicidade, pois a ausência de relatos dos efeitos danosos é frequentemente interpretado como indicativo que a terapia não causa danos, o que claramente não precisa ser. Os efeitos da terapia são geralmente mais pronunciados quando aplicada a pacientes com condições mais severas (por exemplo, sucção brônquica pode ser esperada produzir uma maior redução no risco de problemas respiratórios em pacientes TCE com excesso de secreção do que em TCE’s com pouca secreção).

Os riscos da terapia (nesse caso devido ao aumento da pressão intra-craniana) tendem a ser relativamente constantes, não importando a severidade da condição. Portanto, uma terapia trará mais efeitos benéficos do que maléficos quando aplicada a pacientes com condições severas, e os terapeutas devem ser relutantes em dar uma terapia com efeitos colaterais potencialmente sérios quando o paciente tem uma condição menos severa.

Na prática, é frequentemente mais difícil nos estudos clínico-experimentais de detectar os efeitos danosos, pois eles tendem a ocorrer infrequentemente, e a maioria dos estudos não têm um número suficiente de indivíduos para que possam ser detectados quando ocorrem. Portanto, mesmo depois que for realizado um bom estudo controlado e randomizado de uma determinada terapia há um papel importante para um “monitoramento” em larga escala para se determinar se os efeitos danosos não ocorrem excessivamente.

Até que tais estudos tenham sido realizados, os terapeutas devem estar atentos a aplicar terapias potencialmente danosas, particularmente a pacientes que se beneficiariam pouco com ela.

Resumindo essa seção:
Significância estatística não se equivale a utilidade clínica. Para ser clinicamente útil, uma terapia deve:
- afetar resultados os quais os pacientes estão interessados.
- ter efeitos suficientemente grandes para valerem a pena.
- produzirem mais benefício do que malefício.


Concluindo...
O estudo científico é imprescindível na nossa prática clínica e uma variedade enorme de estudos clínico-experimentais está disponível para o aprimoramento dos profissionais. Ainda que seja uma surpresa para muitos, a literatura está povoada de estudos que podem ser considerados inválidos devido a sua pobre metodologia científica. É necessário, portanto, que saibamos como encontrar aqueles que oferecem qualidade e validade. Felizmente, têm havido uma tendência, com a introdução da Medicina Baseada em Evidência (Evidence-Based Medicine), no aumento dos estudos com essas características.
* VAS - Visual Analog Scale. Uma escala subjetiva para medição de dor onde o indivíduo marca em uma linha horizontal de 0 a 10 (10 cm, por exemplo) o ponto que representa sua dor.


Para saber mais, leia:
Dunn G, Everitt B. Clinical Biostatistics. An Introduction to Evidence-Based Medicine. Halsted Press 1995.
Fletcher R, Fletcher S. Epidemiologia Clínica - Bases Científicas da Conduta Médica. 2ª ed. Artes Médicas; 1991.
Guyatt GH et al. User’s guide to the medical literature: II. How to use an article about therapy or prevention: A. Are the results of this study valid? JAMA 1993 270: 2598-2601.
Guyatt GH et al. User’s guide to the medical literature: II. How to use an article about therapy or prevention: B. What were the results and will they help me in caring for my patients? JAMA 1993 271: 59-63.

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