Reabilitação Funcional em pacientes com AVC através do fortalecimento e condicionamento muscular: esclarecendo velhos mitos

             Introdução

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define o acidente vascular cerebral (AVC) como uma síndrome clínica com desenvolvimento rápido de sinais clínicos de perturbação focal ou global da função cerebral, com possível origem vascular e com mais de 24 horas de duração.

No Brasil, o AVC é considerado a principal causa de morte. Além disso, estudos realizados nas cidades de Salvador e Joinville indicam incidência em adultos jovens variando de 0,08% a 0,18%. Apesar de a prevalência ainda ser desconhecida, ela não deve ser muito diferente da apresentada nos outros países. (LESSA, 1999)

Sob a ótica motora e em termos de manifestações clínicas, a hemiplegia ou paralisia de um hemicorpo é o sinal clássico decorrente de um Acidente Vascular Cerebral. Além desta, outras manifestações pode ocorrer como os distúrbios sensitivos, cognitivos, de linguagem, de equilíbrio, força muscular e do tônus postural1. (BASMAJIAN, 1987)

A reabilitação destes pacientes é na maioria das vezes, um grande desafio. Os esforços para minimizar o impacto e para aumentar a recuperação funcional após AVC têm sido um ponto importante para os profissionais de reabilitação.

É consenso na literatura atual que a fraqueza muscular, caracterizada pela incapacidade do músculo em gerar força nos níveis considerados normais é uma séria limitação à função e à reabilitação, atrasando muitas vezes o ganho funcional dos pacientes hemiparéticos crônicos ao longo da terapia.

A fraqueza muscular é uma das alterações mais significativas presentes após o AVC e um fator limitante para a recuperação funcional. O fortalecimento muscular não tem sido muito utilizado na reabilitação após o AVC porque se acreditava que haveria uma interferência na coordenação e no timing do controle motor, exacerbando a restrição imposta pelo músculo espástico e reforçando os padrões anormais de movimento. Não há evidências científicas que suportem tal afirmação. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008).
 
Acidente Vascular Cerebral (AVC)

As manifestações clínicas presentes no AVC envolvem comumente alterações motoras e sensitivas, prejudicando a função física. Déficits nas funções cognitiva, perceptiva, visual, emocional e continência podem estar associados ao AVC, e a severidade do quadro clínico dependerá da área e extensão da lesão. A presença de déficit do controle motor pode ser caracterizada por fraqueza, alteração de tônus e movimentos estereotipados, que podem limitar as habilidades para realizar atividades como deambular, subir escadas e autocuidar-se.

Espasticidade

A espasticidade está associada à exacerbação dos reflexos tendinosos e é caracterizada pelo aumento da resistência ao alongamento muscular passivo, que é elevada com a velocidade deste alongamento e também pode ser acompanhada de mudanças nas propriedades intrínsecas da musculatura esquelética, através da alteração no comprimento e no número dos sarcômeros, da relação entre comprimento e tensão, da transformação de fibras musculares do tipo II em tipo I e da fibrose tecidual, contribuindo ainda mais para a diminuição das atividades funcionais dos pacientes que apresentam este quadro de espasticidade após a doença encéfalo-vascular (DEV). (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

Os mecanismos fisiopatológicos da espasticidade permanecem obscuros. As causas principais, atualmente consideradas possíveis, incluem: aumento do nível de neurotransmissores nas vias existentes, alterações na excitabilidade dos interneurônios espinhais, hipersensibilidade dos receptores e formação de novas sinapses pelo processo de reinervação colateral. Este último mecanismo, apesar de não ser completamente aceito, poderia ser responsável pelo curso de tempo variável em que a espasticidade se desenvolve em pacientes neurológicos. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

Imediatamente após o AVC há perda do tônus muscular referido como paralisia flácida. A flacidez é caracterizada como perda do movimento voluntário e ausência da espasticidade reflexa. Nenhuma resistência é encontrada quando o alongamento é aplicado na musculatura. Há, usualmente, pouco ou nenhum movimento voluntário durante este estágio que pode durar dias, horas ou semanas. O tônus muscular tende a aumentar gradualmente e a espasticidade, a se instalar. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

A espasticidade caracteriza-se pelo aumento da resistência ao alongamento passivo e é dependente da velocidade do alongamento; está associada à exacerbação dos reflexos tendinosos, sendo uma das seqüelas mais comuns presentes nas lesões do sistema nervoso central. No AVC há uma predileção da espasticidade pela musculatura flexora de membros superiores e extensora de membros inferiores. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

A quantificação do grau de espasticidade continua sendo um problema de difícil solução, pelo fato de ser influenciada por fatores como ansiedade, depressão, fadiga e/ou temperatura ambiente. Esforços para quantificar os graus de espasticidade têm-se concentrado em medidas clínicas subjetivas ou em medidas mais objetivas por meio de métodos eletromiográficos, biomecânicos e neurofisiológicos. Entretanto, nenhuma medida uniforme foi atingida. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

A relação entre espasticidade e função não está clara. Apesar de haver evidências clínicas de que a espasticidade limita os movimentos voluntários, observa-se que, à medida que ocorre retorno da função voluntária, a dependência dos padrões sinérgicos e da espasticidade tende a diminuir. Parece não haver uma relação direta entre a performance dos movimentos voluntários e a hiperatividade do reflexo de estiramento. Entretanto, correlações entre a capacidade funcional e o grau de espasticidade têm sido estabelecidas.

Fraqueza muscular

A fraqueza muscular tem sido reconhecida como fator limitante de pacientes pós-AVC e é refletida pela incapacidade de gerar força muscular em níveis normais. Mudanças fisiológicas no músculo plégico podem contribuir para o déficit de força observado. Estudos morfológicos dos músculos esqueléticos de pacientes hemiplégicos têm sugerido que a atrofia muscular é conseqüente do desuso, da perda dos efeitos tróficos centrais, da atrofia neurogênica, do repouso excessivo no leito durante a fase aguda do AVC, da perda de unidades motoras, da alteração na ordem de recrutamento e do tempo de disparo das unidades motoras, da alteração na condução dos nervos periféricos e do estilo de vida sedentário. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

Entre o 21º e 61º mês após o AVC, o número de unidades motoras funcionantes é reduzido em aproximadamente 50%. Uma explicação para esta perda é a degeneração do trato corticoespinhal, resultando em alterações transsinápticas nos motoneurônios. As unidades motoras do lado parético são mais fadigáveis, levando a um déficit de resistência. A área fascicular total e o número total das fibras grandes mielinizadas da parte ventral da medula lombar estão significativamente diminuídos em pacientes com doenças cerebrovasculares. Ocorre também uma diminuição significativa da área de seção transversa das células do corno anterior da medula cervical do lado afetado em relação ao lado não afetado e ao grupo-controle. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

Existe um déficit de força nos músculos do membro não afetado de indivíduos hemiplégicos e hemiparéticos em relação aos indivíduos saudáveis. Projeções bilaterais do trato corticoespinhal nos músculos dos membros parecem representar um papel importante na fraqueza muscular ipsilateral à lesão do motoneurônio superior. Estudos eletromiográficos indicam que o déficit de força muscular deve-se a mudanças estruturais e mecânicas no músculo hemiparético, nos tendões e no tecido conectivo que impõem restrição passiva, limitando a ativação voluntária do músculo agonista. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

A relação entre espasticidade e fraqueza muscular tem sido relatada como fator de base nos déficits da performance funcional em pacientes com AVC. A força muscular do lado parético, ao contrário da espasticidade, correlaciona-se com as atividades funcionais, principalmente a marcha. A força muscular do lado parético, quando avaliada por medidas de torque e força, relaciona-se positiva e significativamente com a velocidade da marcha, a cadência, o nível de independência e a distância. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

Fortalecimento muscular

A fraqueza muscular é uma das alterações mais significativas presentes após o AVC. O fortalecimento muscular não tem sido muito utilizado na reabilitação após o AVC porque se acreditava que haveria uma interferência na coordenação e no timing do controle motor, exacerbando a restrição imposta pelo músculo espástico e reforçando os padrões anormais de movimento. Não há evidências científicas que suportem tal afirmação. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

Um aumento na força do quadríceps foi associado a mudanças positivas na performance da marcha de crianças com diplegia espástica. Um programa de treinamento com resistência progressiva resultou em aumento na força muscular, mobilidade articular e resistência em adultos com paralisia cerebral espástica, entretanto, nenhum aumento na espasticidade foi observado. Programas de treinamento de força resultam em hipertrofia seletiva e significativa das fibras de contração rápida, tipo II, aumento na ativação neural, bem como melhora da função e auto-estima. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

A fraqueza muscular do lado parético deve-se, em parte, à desorganização do comando descendente. Em pacientes com paresia espástica, a contração concêntrica promove alongamento no músculo antagonista, podendo incitar o reflexo de estiramento que irá limitar o movimento. Na contração excêntrica, o alongamento do agonista pode levar à ativação do reflexo de estiramento neste músculo, reforçando o movimento voluntário. Em pacientes espásticos a ativação do antagonista em contração excêntrica não difere de indivíduos saudáveis. Já na movimentação concêntrica a diferença é significativa, sendo realçada com o aumento da velocidade. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

Knutsson et al. realizaram um trabalho com 15 pacientes paraparéticos a fim de comparar o efeito do treinamento excêntrico e concêntrico nestes indivíduos. Foi observado um aumento de força no quadríceps em ambos os treinamentos. Houve um aumento na força de contração concêntrica de 30% após o treinamento excêntrico, sendo maior que o obtido no treinamento concêntrico.

Hakkinem e Komi, observaram que a utilização de treinamento muscular combinando movimentos concêntrico e excêntrico resulta em maiores ganhos na força muscular e na performance funcional. Contrações concêntricas de alta tensão asseguram que os estímulos do treinamento alcancem unidades motoras inteiras. Contrações excêntricas, por outro lado, influenciam mais eficientemente os componentes elásticos do músculo. Medidas de força muscular são indicativos da performance e da função após o AVC. Déficits de força muscular são apontados como fatores predisponentes de quedas em idosos. Medidas objetivas da força de extensores de joelho do lado afetado têm sido apontadas como determinantes da velocidade da marcha e do grau de independência em idosos. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

A força muscular do lado parético correlaciona- se significativamente com a performance da marcha, cadência, distância caminhada, padrão de marcha e independência em indivíduos que sofreram AVC. Estudos que avaliaram os déficits de força nos extensores de joelho, dorsiflexores e flexores plantares confirmaram sua correlação com variáveis da marcha.Aproximadamente 40% do trabalho muscular requerido na marcha é realizado pelo membro afetado. A relação entre a força do lado não afetado e a performance da marcha não tem sido estabelecida, indicando que a melhora após o AVC não pode ser atribuída a um aumento no uso da musculatura remanescente, particularmente a do lado não afetado. Sharp realizou um trabalho com 15 idosos pós-AVC com idade média de 67 anos, durante 6 semanas. O estudo constava de um programa de fortalecimento isocinético de flexores e extensores de joelho do membro parético utilizando o Cybex II. Foi encontrada uma melhora significativa na performance muscular dos flexores e dos extensores de joelho e na velocidade da marcha, sem alteração no tônus muscular. Glasser comparou o treinamento isocinético com um programa de cinesioterapia convencional em um grupo de 20 hemiplégicos. A eficácia do treinamento foi equivalente em ambos os métodos. (SALMELA; OLIVEIRA et. al. 2000 e TRÓCOLI; FURTADO 2008)

Engardt et al. compararam a influência do treinamento isocinético de força em regimes concêntrico e excêntrico dos extensores de joelho na velocidade da marcha, na habilidade de passar de assentado para em pé e no nível de co-contração do antagonista em 20 hemiplégicos. Eles observaram que, embora as modalidades tenham alcançado um aumento considerável na força e na velocidade da marcha, o treinamento excêntrico foi mais efetivo na promoção de uma distribuição de peso simétrica nos membros inferiores para levantar da posição assentada. Foi observado também um nível de co-contração dos antagonistas no movimento concêntrico, mas não no excêntrico.

Teixeira realizou um programa de fortalecimento muscular e condicionamento físico com 13 hemiplégicos crônicos durante 10 semanas. O programa consistia de exercícios de aquecimento, exercícios aeróbicos a 70% da freqüência cardíaca obtida no teste de esforço, fortalecimento dos grandes grupos musculares do membro inferior parético e resfriamento.

Houve uma melhora de 39% no perfil de atividade humana, 78% na qualidade de vida, 28% na velocidade da marcha e 37% na habilidade para subir escadas sem, entretanto, observar alterações do grau de espasticidade tanto dos flexores plantares quanto dos extensores do joelho.

Salmela et.al investigou a performance funcional em indivíduos hemiplégicos crônicos, quando submetidos a um programa de fortalecimento muscular, utilizando a musculação e condicionamento aeróbio. Trinta pacientes foram recrutados na comunidade obedecendo aos critérios de inclusão, e submetidos ao programa de treinamento pré-estabelecido, três vezes por semana, durante 10 semanas. Os pacientes foram avaliados antes e após o treinamento nos seguintes parâmetros funcionais: velocidade de marcha, habilidade para subir escadas, endurance (velocidade máxima e índice de custo fisiológico) e simetria no sentar e levantar. Estatísticas descritivas e testes de normalidade (Shapiro-Wilk) foram utilizadas para todas as variáveis. Testes-t de Student para dados emparelhados foram utilizados para investigar o impacto do treinamento. Melhoras significativas foram observadas na velocidade de marcha, habilidade para subir escadas e velocidade máxima. Não foram observadas diferenças significativas nas medidas de simetria e índice de custo fisiológico. Os achados demonstraram melhoras significativas nas medidas de performance funcional, após 10 semanas de treinamento, associando musculação e condicionamento aeróbio.

Medeiros et. al. Afirma que há evidências de que o treinamento de força tem um importante papel na recuperação funcional mesmo em portadores crônicos de acidente vascular cerebral, principalmente se o treino está relacionado com a execução de tarefas cotidianas. Tem sido demonstrado que o treinamento de força não traz prejuízos ao tônus muscular, não produzindo acentuação da espasticidade.

Conclusão

A utilização de programas de fortalecimento muscular em hemiparéticos sempre despertou preocupações a respeito de possíveis efeitos deletérios sobre o tônus muscular. No entanto, todos os estudos (100%) que avaliaram a influência do exercício resistido para ganho de força muscular no tônus muscular não encontraram nenhuma alteração significativa após a aplicação do programa de treinamento.

Referências

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TRÓCOLI, T. O.; FURTADO, C. Fortalecimento muscular em hemiparéticos crônicos e sua influência no desempenho funcional. Revista Neurociências 2008.

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